15 março 2010

Merton, o Thomas

"Como foi possível que, quando a escória do mundo se reuniu na Europa Ocidental, quando os godos, francos, normandos e lombardos se misturaram com a podridão da velha Roma para formar uma mistura de raças híbridas, todas elas conhecidas por sua ferocidade, ódio, estupidez, astúcia, luxúria e brutalidade - como acoteceu que de tudo isso fosse surgir o canto gregoriano, os mosteiros e as catedrais, os poemas de Prudêncio, os comentários e as histórias de Beda, a Moralia, de Gregório Magno, A cidade de Deus e a Trindade, de Sto Agostinho, os escritos de Sto Anselmo, os sermões de São Bernardo sobre o Cântico dos Cânticos, a poesia de Caedmon e Cynewulf, de Langland e de Dante, a Summa de Sto Tomás e o Oxoniense de Duns Scotus?"

(Thomas Merton - A Montanha dos Sete Patamares)

26 agosto 2009

A Beleza é Efêmera

Segue a bela dica do nosso amigo Edy G. A animação 'Let Yourself Feel ', de Esteban Diácono, sob música de Olafur Arnalds, um daqueles compositores que mostra como é possível fazer muito com pouco.

let yourself feel. from Esteban Diácono on Vimeo.

06 agosto 2009

Três Filmes e o Jazz



"Espero, lady Francis, que vivamos o suficiente para ver uma avenida batizada com o nome de Charlie Parker. Parque Lester Young. Praça Duke Ellington. E até uma rua chamada Dale Turner."
(Dale Turner à Francis, em Round' Midnight)


Dizia o pensador que tudo o quê fosse humano lhe interessava. Digo que tudo o que é jazz me interessa, porque além de humano, é jazz. E nada mais humano que assistir um bom filme...sobre jazz.

Não são muitos os filmes sobre
jazz que até hoje chegaram a nós. Mas há três preciosas películas que nos fazem esquecer a escassez. O primeiro é The Cotton Club (1984), do diretor Francis Ford Coppola. Tendo como pano de fundo um dos mais famosos clubes noturnos e lendário templo do jazz da Nova York dos anos 20 e 30, situado no Harlem, que em plena lei seca servia champgne e whisky sem problema algum, o filme conta a história da amante (vivida por Diane Lane) de um gângster, o temido Donlad Schultz (James Remar), que se envolve com o trompetista Dixie Dwyer (Richard Gere). Essa superprodução recriou a atmosfera conturbada dos anos 20 nos EUA, onde viviam gângsters, empresários, músicos, dançarinas, em meio a grandes espetáculos.. Destaque para os sensacionais números de sapateado de Gregory Hines e para o 'mestre de cerimônias' do Cotton Club, interpretado por ninguém menos que mr. Tom Waits. Ainda que a informação oficial seja que foi o próprio Richard Gere quem interpretou seus números ao trompete, sua atuação não parece muito convincente. Pelo menos não tanto quanto a de Dexter Gordon, em Round' Midnight.




Round' Midnight (
1986 - no Brasil, Por Volta da Meia-Noite) é um imprescindível filme. Depois de Bird, de Clint Westwood, certamente é uma das mais belas homenagens ao jazz. Inspirando-se na vida Lester Young e Bud Powell, o diretor Bertrand Tavernier ilustra a vida de músicos americanos que se auto-exilaram, entre 40 e 60, na França. A história se passa em Paris, 1959 (opa, alguém disse 1959?) e conta a paixão de François Cluzet, desenhista parisiense, pela melodia do sax tenor de Dale Turner, interpretado por Dexter Gordon (saxofonista de primeira linha que trabalhou com Louis Armstrong, Lionel Hampton, Gillespie, entre outros). François sacrifica sua vida pessoal para tentar salvar Dale Turner, afundado no álcool. Nessa dramática e apaixonante tentativa de um fã procurando salvar a auto-destrutiva vida seu ídolo, Tavenier mostra a vida de muitos dos grandes músicos que foram levados à lama pelas drogas e pelo álcool - válvulas de escape para homens que só viam significado para a vida na música que faziam nos palcos. Destaque para a primorosa atuação de Dexter Gordon, que lhe valeu indicação ao Oscar, e para magnífica e premiada trilha sonora de Herbie Hancock.




Mas nem todo jazzman foi drogado ou alcoólatra. Ao menos é o que o diretor Spike Lee mostra em Mo' Better Blues (
1990, Mais e Melhores Blues), ao procurar criar uma atmosfera oposta, por exemplo, a de Round Midnight, fugindo da idéia de álcool, drogas e arrependimentos. O filme tem pretensões ficcionais, mas também ilustra um ponto comum a esses grandes músicos: a música acima de tudo. Mas dessa vez, sob um olhar do profissionalismo dos músicos. O filme conta a história de Bleek Gilliam (Denzel Washington), um homem dedicado ao trompete desde a infância, seu altos e baixos, a rivalidade com o sax tenor de sua banda, Shadow Henderson (interpretado pelo caçador de vampiros, Wesley Snipes), a antiga amizade com seu produtor que tem problemas com vício em jogos, etc. É um requintado filme e merecem destaques os números interpretados por Denzel ao trompete.



Enfim, três bons filmes que merecem serem assistidos e uma só música.
Jazz.

07 julho 2009

Outros 'Time', ou Quando Desmond lembra Thompson


por Edy Gianez

O C.J. está completamente certo. É bem provável que Time Out seja o melhor disco para todos aqueles que gostariam de se aproximar do jazz e não sabem por onde começar. Afinal de contas, quando pensamos em jazz, a primeira coisa que nos vem à mente é aquele fraseado enlouquecido do bebop, ou então aquele som de vitrola velha nos fundos de um antiquário. Mas faz um grande favor ao nos presentear com maravilhosas melodias facilmente 'assoviáveis'. Lembro-me de ficar, na época de colégio, tentando reproduzir os solos de Dave Brubeck Paul Desmond com a boca (prática ridícula e desaconselhável), pois eram fáceis de lembrar e nem por isso desprovidos de lirismo.

Mas tenho que confessar que minha introdução a este mundo musical se deu pelo outro disco citado por nosso amigo: Time Further Out (1961), gravado dois anos depois do clássico Time Out. Logo de cara, temos na capa do disco um quadro de Miró a nos fornecer o espaço onde se desenvolvem os compassos das músicas (em especial, e em destaque, os compassos 3/4 e 5/4, inovadores para a época, onde até então o jazz caminhava em 2/4 e 4/4). Mantendo o mesmo empenho em trazer outras culturas musicais para dentro do jazz (talvez daí a universalidade que Brubeck tão logo alcançou) - como no caso da marcha turca em
Blue Rondo a la Turk de Time Out (59) -, Brubeck recupera o ritmo de cerimênia dos maoris da Nova Zelândia em Maori Blues, a sensualidade de Chopin em Bluette, os tambores africanos em Far More Drums e, uma das músicas mais divertidas do jazz e que recupera a técnica do sapateado (apontado por alguns como sendo mais responsável pelo origem do jazz do que os tambores africanos): Unsaquare Dance.

Quanto à relação entre
Miró e Brubeck, ele mesmo explica - corroborando as explicações acerca da inovação desses três discos dadas pelo dono desse blog - "Miró exprimiu em termos visuais minha prórpia identificação com a música - isto é, em busca por algo novo dentro das velhas formas, uma perspectiva inesperada, uma injunção surpreendente e uma tensão interior que contradiz a espontaneidade da composição".

Uma palavra final sobre esse disco: ele é como um daqueles arcos romanos fincados na entrada das cidades a fim de marcar a grandiosidade do império para aqueles que adentravam-o (ou melhor, para marcar a vitória dos romanos a cada batalha de expansão do seu domínio). Do mesmo modo,
Time Further Out marca a grandiosidade do jazz sem, contudo, atrapalhar o ouvinte neófito com intrincadas melodias ou ritmos impraticáveis para a sola de nossos pés. Esse disco do quarteto de Brubeck de 1961 é para ouvir e sair cantando. Ele é uma vitória do gênio contra o preconceito. Da sensibilidade melódica contra a audição oca do entretenimento. É um disco de formação, como diriam os românticos alemães, e também um disco de coração.



Mas esse papo todo de ficar lembrando da minha ridícula prática de imitar Paul Desmond com o canto da boca no colégio, me fez lembrar de outra coisa: o lançamento da HQ Retalhos, de Craig Thompson. Ao ver esse quadrinho pela primeira vez na livraria, confesso que não me animei muito para ler suas mais de 570 páginas - apesar do magnífico traço branco e preto de Thompson. Na verdade, foi o reforço da qualidade do trabalho dado por Hiro (o artista responsável, entre outros, pelo desenho que encontramos na bandeijinha do
McDonalds) que me levou até a mesma livraria e adquirir o calhamaço.

Em duas horas é possível devorar a história de, como já falamos aqui, redenção do autor. É engraçado como quando jovens somos lançados a questionamentos derivados de fatos muito simples (pelo menos observados da perspectiva adulta). No caso, Thompson é levado a questionar o próprio cristianismo só por causa (esse '
' não é depreciativo, afinal, o motivo era muito justo, como vocês poderão conferir) de sua paixão por Raina, uma linda garota que conhecera num acampamento cristão. O ortodoxismo da direita americana é posto então em questão (o que não nos leva a cortejar o pensamento de esquerda, veja lá!) quando o assunto é amor - sexo, mais propriamente -, ciências e escolhas pessoais. Como no momento em que Craig está relendo as notas de rodapé da tradução de sua Bíblia, onde numa passagem de Lucas (17:20-21) há a seguinte nota: "Certa vez, tendo sido interrogado pelos fariseus, sobre quando viria o Reino de Deus, Jesus respondeu: 'O Reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá 'Aqui está ele', ou 'Lá está', porque o reino de Deus está dentro de vocês".

Outro momento digno de nota é quando Craig e Raina têm uma relação mais 'íntima', a descrição poética daquele encontro de corpos é realmente de se ficar pensando em como a relação apática dos casamentos modernos transforma toda a magia do desejo em burocracias da carne (quando ainda há tal burocracia, quando ele não foi soterrada pelas preocupações cotidianas e distâncias caseiras).

O fato é que, ao mesmo tempo em que eu ficava cantarolando Paul Desmond na última carteira do terceiro colegial (peço desculpas aos meus amigos das carteiras mais próximas), pensava em Craig: "
Obrigado Deus, pela perfeição de suas criaturas. De pele suave e pálida como o luar, sob a pele, seus ossos se entrelaçando, se ajustando, subindo pela crista ilíaca, mergulhando na clavícula. Obrigado pelo ritmo de seus movimentos, curvando-se, espreguiçando-se, seus contornos envolvendo o cobertor como onda. Ela é sua. Ele é perfeita. um Templo! Seu cabelo derramando-se sobre as têmporas. Deitado sobre seu peito, posso ouvir a eternidade... espaços ocos, solitários, e correntes que se agitam sem cessar. A neve caída recebe a neve cadente como um sussurro".

05 julho 2009

Time Out (1959)



Nem só de Kind Of Blue viveu o ano de 1959... As gravações de Miles Davis e seu quinteto no 30th Street Studio, em Nova York, terminaram quase no fim de Abril. Para um amante do jazz, ver a programação da época daquele estúdio da Columbia é uma das coisas mais surpreendentes. Dois meses depois, no dia 25 de Junho, o Dave Brubeck Quartet entrava no estúdio para gravar um dos álbuns mais belos e rentáveis da história do jazz:
Time Out.

Time Out é um daqueles dez discos para caírem com você do avião numa ilha deserta. É, sem dúvida, um dos grandes momentos da dupla Dave Brubeck e Paul Desmond (que se conheceu lutando na Segunda Guerra Mundial).

Incialmente,
Time Out foi concebido como uma experimentação do quarteto e um risco assumido pela Columbia ao editá-lo. O álbum apresentava composições inéditas baseadas em compassos que não eram muito utilizados até então no jazz (como o ternário 9/8 e a valsa). Mas apesar das críticas iniciais, logo Time Out se tornaria um dos álbuns mais vendidos e executados do gênero, chegando ao topo de listas como a da Billboard e do National Recording Registry, em 2005.




Mas, independente de seu imenso sucesso de vendagem, o fato é que ouvir
Time Out é uma das grandes experiências ao ouvir jazz. Ali estão Dave Brubeck em grande inspiração (Brubeck pode até não ser um grande virtuose do piano, mas certamente um dos mais inspirados); o lírico e limpo sax de Paul Desmond (um sinônimo do West Coast Jazz); e a rítmica cozinha do baixo de Eugene Wright e a bateria de Joe Morello. A utilização de compassos não comuns até então ao jazz dá um ar bem marcado e de estabilidade ao álbum. Além, claro, de encontrarmos também ali a mais que famosa faixa Take Five.

Enfim,
Time Out foi o primeiro álbum de uma trilogia antológica que celebra a polirrítmica do jazz, completada por Time Further Out (1961) e Time in Outer Space (1962). Mas certamente o irmão mais velho é o melhor. Afinal, já é um cinqüentão de respeito.


29 junho 2009

Astral Weeks (1968)


por Edy Gianez


Nem só de revoluções estudantis e putaria flower power viveram os anos 60. Há um contraponto introspectivo, de reflexão e melancolia que encontramos, por exemplo, na trinca: Nick Drake, Tim Buckley e Van Morrison.


Seguindo a idéia de que o fim dos anos 60 foi um momento interessante musicalmente, anos bombásticos na história da cultura mundial, a tríade chama atenção - em especial Van Morrison.


Vejam, não se trata aqui de mera depressão-clichê, como aquela exultada por bandas que encontraram nisso mais uma veia de mercado do que um motivo para fazer música (sim, estou falando dos “emos”), ou mesmo de emulação musical de um suicídio, pois apesar de Drake e Buckley terem supostamente cometido suicídio (overdoses), trata-se aqui de uma busca por redenção. O jornalista e escritor Lester Bangs (aquele gordo de bigode e jaqueta de couro que é retratado no filme Quase Famosos pelo ator Phillip Seymour, dando umas dicas para o jovem jornalista musical), ao falar do disco Astral Weeks (1968), segundo álbum de Van Morrison, nos dá um exemplo de como essa busca por redenção em meio a melancolia alcança uma determinada forma:


“Van Morrison está interessado, obcecado com a quantidade de informação verbal ou musical que ele consegue comprimir no menor espaço possível e, de maneira inversa, quão longe ele consegue esticar uma nota, palavra, som ou imagem. Capturar o instante, seja um carinho ou um beliscão. Ele repete certas frases que a extremos, na boca de qualquer outro, seriam ridículas, porque ele está esperando uma visão se descortinar, tentando, da maneira mais livre possível, arrastá-la pelos cotovelos. Alguma vezes eles nos dá isso com seus silêncios, extinguindo a canção no meio do vôo: “It´s too late to stop now!”. (Lester Bangs,'Reações Psicóticas'. Conrad)


E seguimos com um exemplo lírico da primeira faixa do disco (disco, aliás, que está em 19º lugar na lista dos 100 melhores discos feitos na história, editada pela Rolling Stones):


Astral Weeks

If I ventured in the slipstream
Between the viaducts of your dream
Where immobile steel rims crack
And the ditch in the back roads stop
Could you find me?
Would you kiss-a my eyes?
To lay me down
In silence easy
To be born again
To be born again


Como diria Fabio Massari, o disquinho é seminal! Isso porque aqui a introspecção não é apenas algo autoral-egocêntrico, mas é a busca por algo mais além de si (onde talvez o próprio “si” já não seja necessário); e a melancolia não é apenas frustração mal resolvida, mas a constatação de uma deficiência em expressar essa experiência “mística” da redenção. Daí então porque Morrison repete diversas vezes a mesma palavra, ou frase, como, por exemplo, na faixa Madame George:

Say goodbye goodbye goodbye goodbye to madame george
Dry your eye for madame george
Wonder why for madame george
The love’s to love the love’s to love the love’s to love...
Say goodbye, goodbye
Get on the train
Get on the train, the train, the train...
This is the train, this is the train...
Whoa, say goodbye, goodbye....
Get on the train, get on the train...


Drake e Buckley ficam pra próxima. Astral Weeks para vocês!


ps: Para ver a conquista de Van Morrison depois desse disco, basta ouvir o gozo de alegria que pertence a cada nota emitida de His band and the Street Choir, de 1970!

07 junho 2009

Bitches Brew (1969)



Há um Olimpo musical no qual vivem artistas que têm uma mágica de constante juventude criativa. Sem apelarem para modismos - mas sabendo estar atentos para o trem que transporta as sensibilidades dos homens de todo o mundo - sabem acompanhar o passo da História e manterem-se com uma dourada adolescência artística. ... Um exemplo é Miles Dewey Davis Jr.

(Aramis Millarch)

. 1969 foi um ano interessante musicalmente. Foi o ano das Curvas da Estrada de Santos, de saber Cadê Teresa, de mandar Aquele Abraço, de cantar País Tropical e Que Maravilha! Foi o ano de estréias de Elton John, Yes, Santana, Jackson 5. Foi o ano de álbuns como Yellow Submarine e Abbey Road, dos Beatles, de Let It Bleed dos Stones, de Tommy do The Who e From Elvis in the Memphis de Elvis. Ano de Woodstock e toda aquela putaria que todo mundo sabe…


. Enquanto os nossos baianos compunham e tocavam a Tropicália, o jazz também entrava em ebulição de experimentações. Já se colhiam frutos do chamado free jazz que Ornette Coleman tocava desde 1960 no Five Spot Café, em Nova York. As estruturas de improvisão haviam evoluído de tal maneira que alguns acreditavam que o jazz tinha chegado ao seu limite. Opa, alguém disse limite? Apresento-lhes Miles Davis.


. Em 1969, a grande capacidade de observação e síntese de Miles Davis gestava um outro grande momento de evolução em sua expressão artística. Desenvolvia idéias e sons esboçados um ano antes, em Miles in the Sky e Filles de Kilimanjaro - era a sua chamada 'fase elétrica'. A parafernália eletrônica que Miles havia pedido à gravadora Columbia fazia agora a alegria da imaginação de uma grande banda reunida. Ao seu famoso Grande Segundo Quinteto (Chick Corea, Herbie Hancock, Wayne Shorter, Ron Carter e Tony Williams), vieram somar nomes como o do guitarrista John McLaughlin e do tecladista Joe Zawinul. Dessa reunião, em fevereiro de 69, primeiro veio a público o álbum In a Silent Way, um cumprimento de aproximação de Miles Davis ao rock dos anos 60.

. De volta aos estúdios da Columbia em Agosto, animado com o sucesso do último álbum, o homem que sofria de criatividade, segundo nosso grande Aramis Millarch, Miles Davis dá continuidade à exploração daquele novo jazz-rock. Em três dias, a grande banda grava um álbum inovador e (r)evolucionário, tão grande quanto Kinf Of Blue: Bitches Brew.


. Bitches Brew é um dos momentos de grande evolução na carreira de Miles Davis e, porquê não, uma das macromutações do jazz - uma evolução que alguns músicos consideram como o limite do jazz, o ponto em que o jazz corre o risco de perder sua identidade (não me pergunte o quê quer dizer 'identidade' em jazz...). O fato é que esse disco cristaliza, privilegiadamente, uma evolução na expressão jazzística. Ao aproximar técnica e padrões do jazz com o rock dos anos 60, Miles acabou por dessacralizar o jazz (ironicamente, um dos homens que o sacralizaram). Ali está representado literalmente o conceito de fusion e as infinitas possibilidades que é e pode ser o jazz.


. O legado desse acontecimento é inúmero e impossível de identificar exatamente. Dali saíram Chick Corea que seguiu o fusion; Wayne Shorter e Joe Zuwinul fundaram o importante Weather Report; John McLaughlin fundou a Mahavishnu Orchestra, banda de jazz-rock; Herbie Hancock seguiu uma considerável carreira pelo fusion pautada no budismo visando a felicidade da platéia; e outras grandes carreiras que dali despontaram.


. Dez anos depois de realizar Kind Of Blue, Miles Davis novamente surgia na crista da onda apontando novos caminhos - ou eram novos limites? A verdade é que Miles Davis não olhava para trás.

24 abril 2009

KIND OF BLUE , 1959. Um Gigante Maior



Por que Kind of Blue é considerado um marco na história do jazz? Além de sua imensa beleza e qualidade sonora, por que o álbum de Miles Davis e seu sexteto de 1959 tornou-se praticamente um mito entre músicos e entendidos do gênero musical? O quê de fato houve de novo, original ou diferente naquele álbum para que as coisas mudassem e águas fossem dividas? Essas são perguntas que, certamente, acabam surgindo para aqueles que adentram o mundo do jazz.

Seria muita pretensão minha querer responder aqui essas perguntas. Deixo isso para Ashley Kahn e seu profícuo livro ‘Kinf Of Blue – A História de Obra-Prima de Miles Davis’ (além do próprio álbum, o livro também é obrigatóri
o para fãs de jazz). Aqui me cabe apenas adjetivar um pouco mais essa apoteose jazzística.

A questão da originalidade e inovação é um problema muito caro à estética. Ainda mais à crítica de arte e de música. Muito mais caro ainda quando se trata de jazz – gênero tão preciso de conceituar quanto sua forma de tocar. De todo modo, acredito que uma boa maneira de entender a história e evolução do jazz é usar de uma analogia com a evolução animal: cadeias de micromutações e macromutações. A história do jazz está cheia delas. São inumeráveis as contribuições para o aperfeiçoamento do som e da técnica de cada instrumento, mas podemos numerar alguns poucos que ditam o caminho. (no trompete, por ex., ver post anterior) Cada músico que encontra sua linguagem e aperfeiçoa a técnica do instrumento é um pequeno elo na evolução e reinvenção do gênero. Mas quando um poder maior de observação e síntese, sob a rubrica de uma genialidade intuitiva e musical, exerce uma intervenção, acontece algo novo ou diferente. Uma macromutação. E o Kind Of Blue de 1959 é uma dessas grandes intervenções.



O óvulo começou a ser fecundado alguns anos antes. Cookin' (1956), Relaxin’ (1957), Miles Ahead (1957), Milestones (1958), Workin’ (1959) são a gestação do que viria a ser apresentado em Kind Of Blue. (Aliás, esses respectivos álbuns, em especial Cookin’, são magníficos registros de Miles). O fraseado limpo, seguro, altamente lírico de emoção controlada, amadureceu bastante ao longo desses álbuns. Mas Kind of Blue não foi apenas um grande momento de um Miles Davis em plena forma e vigor criativo. Kind of Blue tornou-se um cânone da onda de experimentações que rolava entorno da busca de novas escalas e estruturas harmônicas. Kind Of Blue estabeleceu uma nova forma de linguagem no jazz: o jazz modal. Um músico ou especialista explicaria melhor isso, mas Ashley Kahn pode ajudar: o jazz modal mudou a estruturação do improviso, não mais estabelecido em acordes ou harmonias, mas em escalas; o que se traduz em permitir a redução do andamento para um tempo mais lento e ponderado, e prolongar a duração dos solos. Enfim, comparado ao bebop, o jazz modal recuperou a simplicidade na música.

O historiador de arte alemão Johann Winckelmann utilizou o conceito de ‘nobre simplicidade e calma grandeza’ para definir a arte plástica dos gregos. Falando da famosa escultura grega Laocoonte, Winckelmann identifica que a expressão grega mostra, mesmo nas maiores paixões e impetuosas exaltações, uma alma magnânima e ponderada. Gosto de pensar em Kind Of Blue nos mesmos termos: pleno equilíbrio entre ímpeto e controle, entre feeling e técnica.

Miles Davis, John Coltrane, Bill Evans, Cannonball Adderley, Jimmy Cobb, Paul Chambers e Winton Kelly, reuniram-se em 2 de Março e 22 Abril de 1959 para gravar a obra-prima. 50 anos depois a repercussão e influência que esse álbum teve ao longo da história do jazz é imensa, senão decisiva. Mas isso já são cenas dos próximos capítulos... Fato é que Kind Of Blue é um dos maiores momentos do jazz, e porque não da música. E é um exemplo de momentos em que the boss Davis ditou o caminho no jazz. Miles Davis foi responsável por algumas das grandes macromutações no jazz.

E se tudo começou escalando a montanha, depois de 59 o horizonte era o limite.

Sobre o Ombro de um Gigante



por Edy Gianez

Miles Davis é a figura central do Jazz. Definidor de caminhos, passou pelo bebop, cool jazz, fusion e, se ainda estivesse vivo, nos levaria a outros cantos do baú misterioso que é este ritmo. Mas é preciso lembrar que se Miles apontou caminhos à frente é porque ele tinha a vista ampla de quem pertence às alturas. E a montanha que ele havia escalado chamava-se Charlie Parker.


Parker, de apelido Bird, fez seu vôo meteórico entre 1920-1955, e conseguiu fazer tal evolução no jazz, tanto quanto Louis Armstrong havia feito na década de 20. Em meados da década de 40 o swing reinava nos EUA, ele havia se tornado o modelo musical da democracia americana e fora a bandeira da liberdade e progresso desse país durante a Segunda Guerra. No entanto, todo modelo é uma forma, e formas delimitam. Daí, um grupo de músicos procurarem outra via para expressarem sentimentos contraditórios à figura do “american way of life” presente no swing (democracia para o mundo e forte preconceito racial dentro de casa, por exemplo).


Dizzy Gillespie, Thelonius Monk, Kenny Clarke e Bird aventuraram-se nos clubes da 52th Avenue, em Manhattan, para remodular o jazz. Se com Dizzy, Clarke e Monk nós tínhamos a harmonia e o ritmo daquilo que viria a ser chamado de bebop, Bird trouxe – como nota o crítico Stanley Crouch, no já citado documentário de Ken Burns – o cimento que uniria esses tijolos, a saber, o fraseado. Parker voava por sobre as escalas intercalando entre uma nota e outra da melodia conforme aos acordes uma série de outras notas numa velocidade inacreditável.


Mas, a velocidade da vida de Parker, abastecida por heroína e álcool, levou-o muito cedo ao acorde final, privando-nos de uma mente musical que tateava com seu saxofone a escuridão que representa desconhecido. Justa homenagem a esse pássaro fez Clint Eastwood no filme “Bird” (1988). E é o mesmo Clint que nos leva de volta a Miles Davis, já que em seu filme “Na linha de Fogo” (1993), o segurança presidencial Frank (Clint) antes de receber o telefonema do provável assassino do presidente, Mitch Leary (John Malkovich), chega em casa exaurido e põe para tocar “All Blues” do disco “Kind of Blue” , que completa 50 anos nesse mês. Enfim, se Miles é um gigante do jazz, é justo dizer que ele atingiu essa altura ao subir nos ombros de outro gigante.