07 julho 2009

Outros 'Time', ou Quando Desmond lembra Thompson


por Edy Gianez

O C.J. está completamente certo. É bem provável que Time Out seja o melhor disco para todos aqueles que gostariam de se aproximar do jazz e não sabem por onde começar. Afinal de contas, quando pensamos em jazz, a primeira coisa que nos vem à mente é aquele fraseado enlouquecido do bebop, ou então aquele som de vitrola velha nos fundos de um antiquário. Mas faz um grande favor ao nos presentear com maravilhosas melodias facilmente 'assoviáveis'. Lembro-me de ficar, na época de colégio, tentando reproduzir os solos de Dave Brubeck Paul Desmond com a boca (prática ridícula e desaconselhável), pois eram fáceis de lembrar e nem por isso desprovidos de lirismo.

Mas tenho que confessar que minha introdução a este mundo musical se deu pelo outro disco citado por nosso amigo: Time Further Out (1961), gravado dois anos depois do clássico Time Out. Logo de cara, temos na capa do disco um quadro de Miró a nos fornecer o espaço onde se desenvolvem os compassos das músicas (em especial, e em destaque, os compassos 3/4 e 5/4, inovadores para a época, onde até então o jazz caminhava em 2/4 e 4/4). Mantendo o mesmo empenho em trazer outras culturas musicais para dentro do jazz (talvez daí a universalidade que Brubeck tão logo alcançou) - como no caso da marcha turca em
Blue Rondo a la Turk de Time Out (59) -, Brubeck recupera o ritmo de cerimênia dos maoris da Nova Zelândia em Maori Blues, a sensualidade de Chopin em Bluette, os tambores africanos em Far More Drums e, uma das músicas mais divertidas do jazz e que recupera a técnica do sapateado (apontado por alguns como sendo mais responsável pelo origem do jazz do que os tambores africanos): Unsaquare Dance.

Quanto à relação entre
Miró e Brubeck, ele mesmo explica - corroborando as explicações acerca da inovação desses três discos dadas pelo dono desse blog - "Miró exprimiu em termos visuais minha prórpia identificação com a música - isto é, em busca por algo novo dentro das velhas formas, uma perspectiva inesperada, uma injunção surpreendente e uma tensão interior que contradiz a espontaneidade da composição".

Uma palavra final sobre esse disco: ele é como um daqueles arcos romanos fincados na entrada das cidades a fim de marcar a grandiosidade do império para aqueles que adentravam-o (ou melhor, para marcar a vitória dos romanos a cada batalha de expansão do seu domínio). Do mesmo modo,
Time Further Out marca a grandiosidade do jazz sem, contudo, atrapalhar o ouvinte neófito com intrincadas melodias ou ritmos impraticáveis para a sola de nossos pés. Esse disco do quarteto de Brubeck de 1961 é para ouvir e sair cantando. Ele é uma vitória do gênio contra o preconceito. Da sensibilidade melódica contra a audição oca do entretenimento. É um disco de formação, como diriam os românticos alemães, e também um disco de coração.



Mas esse papo todo de ficar lembrando da minha ridícula prática de imitar Paul Desmond com o canto da boca no colégio, me fez lembrar de outra coisa: o lançamento da HQ Retalhos, de Craig Thompson. Ao ver esse quadrinho pela primeira vez na livraria, confesso que não me animei muito para ler suas mais de 570 páginas - apesar do magnífico traço branco e preto de Thompson. Na verdade, foi o reforço da qualidade do trabalho dado por Hiro (o artista responsável, entre outros, pelo desenho que encontramos na bandeijinha do
McDonalds) que me levou até a mesma livraria e adquirir o calhamaço.

Em duas horas é possível devorar a história de, como já falamos aqui, redenção do autor. É engraçado como quando jovens somos lançados a questionamentos derivados de fatos muito simples (pelo menos observados da perspectiva adulta). No caso, Thompson é levado a questionar o próprio cristianismo só por causa (esse '
' não é depreciativo, afinal, o motivo era muito justo, como vocês poderão conferir) de sua paixão por Raina, uma linda garota que conhecera num acampamento cristão. O ortodoxismo da direita americana é posto então em questão (o que não nos leva a cortejar o pensamento de esquerda, veja lá!) quando o assunto é amor - sexo, mais propriamente -, ciências e escolhas pessoais. Como no momento em que Craig está relendo as notas de rodapé da tradução de sua Bíblia, onde numa passagem de Lucas (17:20-21) há a seguinte nota: "Certa vez, tendo sido interrogado pelos fariseus, sobre quando viria o Reino de Deus, Jesus respondeu: 'O Reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá 'Aqui está ele', ou 'Lá está', porque o reino de Deus está dentro de vocês".

Outro momento digno de nota é quando Craig e Raina têm uma relação mais 'íntima', a descrição poética daquele encontro de corpos é realmente de se ficar pensando em como a relação apática dos casamentos modernos transforma toda a magia do desejo em burocracias da carne (quando ainda há tal burocracia, quando ele não foi soterrada pelas preocupações cotidianas e distâncias caseiras).

O fato é que, ao mesmo tempo em que eu ficava cantarolando Paul Desmond na última carteira do terceiro colegial (peço desculpas aos meus amigos das carteiras mais próximas), pensava em Craig: "
Obrigado Deus, pela perfeição de suas criaturas. De pele suave e pálida como o luar, sob a pele, seus ossos se entrelaçando, se ajustando, subindo pela crista ilíaca, mergulhando na clavícula. Obrigado pelo ritmo de seus movimentos, curvando-se, espreguiçando-se, seus contornos envolvendo o cobertor como onda. Ela é sua. Ele é perfeita. um Templo! Seu cabelo derramando-se sobre as têmporas. Deitado sobre seu peito, posso ouvir a eternidade... espaços ocos, solitários, e correntes que se agitam sem cessar. A neve caída recebe a neve cadente como um sussurro".

05 julho 2009

Time Out (1959)



Nem só de Kind Of Blue viveu o ano de 1959... As gravações de Miles Davis e seu quinteto no 30th Street Studio, em Nova York, terminaram quase no fim de Abril. Para um amante do jazz, ver a programação da época daquele estúdio da Columbia é uma das coisas mais surpreendentes. Dois meses depois, no dia 25 de Junho, o Dave Brubeck Quartet entrava no estúdio para gravar um dos álbuns mais belos e rentáveis da história do jazz:
Time Out.

Time Out é um daqueles dez discos para caírem com você do avião numa ilha deserta. É, sem dúvida, um dos grandes momentos da dupla Dave Brubeck e Paul Desmond (que se conheceu lutando na Segunda Guerra Mundial).

Incialmente,
Time Out foi concebido como uma experimentação do quarteto e um risco assumido pela Columbia ao editá-lo. O álbum apresentava composições inéditas baseadas em compassos que não eram muito utilizados até então no jazz (como o ternário 9/8 e a valsa). Mas apesar das críticas iniciais, logo Time Out se tornaria um dos álbuns mais vendidos e executados do gênero, chegando ao topo de listas como a da Billboard e do National Recording Registry, em 2005.




Mas, independente de seu imenso sucesso de vendagem, o fato é que ouvir
Time Out é uma das grandes experiências ao ouvir jazz. Ali estão Dave Brubeck em grande inspiração (Brubeck pode até não ser um grande virtuose do piano, mas certamente um dos mais inspirados); o lírico e limpo sax de Paul Desmond (um sinônimo do West Coast Jazz); e a rítmica cozinha do baixo de Eugene Wright e a bateria de Joe Morello. A utilização de compassos não comuns até então ao jazz dá um ar bem marcado e de estabilidade ao álbum. Além, claro, de encontrarmos também ali a mais que famosa faixa Take Five.

Enfim,
Time Out foi o primeiro álbum de uma trilogia antológica que celebra a polirrítmica do jazz, completada por Time Further Out (1961) e Time in Outer Space (1962). Mas certamente o irmão mais velho é o melhor. Afinal, já é um cinqüentão de respeito.