Seria muita pretensão minha querer responder aqui essas perguntas. Deixo isso para Ashley Kahn e seu profícuo livro ‘Kinf Of Blue – A História de Obra-Prima de Miles Davis’ (além do próprio álbum, o livro também é obrigatório para fãs de jazz). Aqui me cabe apenas adjetivar um pouco mais essa apoteose jazzística.
A questão da originalidade e inovação é um problema muito caro à estética. Ainda mais à crítica de arte e de música. Muito mais caro ainda quando se trata de jazz – gênero tão preciso de conceituar quanto sua forma de tocar. De todo modo, acredito que uma boa maneira de entender a história e evolução do jazz é usar de uma analogia com a evolução animal: cadeias de micromutações e macromutações. A história do jazz está cheia delas. São inumeráveis as contribuições para o aperfeiçoamento do som e da técnica de cada instrumento, mas podemos numerar alguns poucos que ditam o caminho. (no trompete, por ex., ver post anterior) Cada músico que encontra sua linguagem e aperfeiçoa a técnica do instrumento é um pequeno elo na evolução e reinvenção do gênero. Mas quando um poder maior de observação e síntese, sob a rubrica de uma genialidade intuitiva e musical, exerce uma intervenção, acontece algo novo ou diferente. Uma macromutação. E o Kind Of Blue de 1959 é uma dessas grandes intervenções.
O óvulo começou a ser fecundado alguns anos antes. Cookin' (1956), Relaxin’ (1957), Miles Ahead (1957), Milestones (1958), Workin’ (1959) são a gestação do que viria a ser apresentado em Kind Of Blue. (Aliás, esses respectivos álbuns, em especial Cookin’, são magníficos registros de Miles). O fraseado limpo, seguro, altamente lírico de emoção controlada, amadureceu bastante ao longo desses álbuns. Mas Kind of Blue não foi apenas um grande momento de um Miles Davis em plena forma e vigor criativo. Kind of Blue tornou-se um cânone da onda de experimentações que rolava entorno da busca de novas escalas e estruturas harmônicas. Kind Of Blue estabeleceu uma nova forma de linguagem no jazz: o jazz modal. Um músico ou especialista explicaria melhor isso, mas Ashley Kahn pode ajudar: o jazz modal mudou a estruturação do improviso, não mais estabelecido em acordes ou harmonias, mas em escalas; o que se traduz em permitir a redução do andamento para um tempo mais lento e ponderado, e prolongar a duração dos solos. Enfim, comparado ao bebop, o jazz modal recuperou a simplicidade na música.
O historiador de arte alemão Johann Winckelmann utilizou o conceito de ‘nobre simplicidade e calma grandeza’ para definir a arte plástica dos gregos. Falando da famosa escultura grega Laocoonte, Winckelmann identifica que a expressão grega mostra, mesmo nas maiores paixões e impetuosas exaltações, uma alma magnânima e ponderada. Gosto de pensar em Kind Of Blue nos mesmos termos: pleno equilíbrio entre ímpeto e controle, entre feeling e técnica.
Miles Davis, John Coltrane, Bill Evans, Cannonball Adderley, Jimmy Cobb, Paul Chambers e Winton Kelly, reuniram-se em 2 de Março e 22 Abril de 1959 para gravar a obra-prima. 50 anos depois a repercussão e influência que esse álbum teve ao longo da história do jazz é imensa, senão decisiva. Mas isso já são cenas dos próximos capítulos... Fato é que Kind Of Blue é um dos maiores momentos do jazz, e porque não da música. E é um exemplo de momentos em que the boss Davis ditou o caminho no jazz. Miles Davis foi responsável por algumas das grandes macromutações no jazz.
E se tudo começou escalando a montanha, depois de 59 o horizonte era o limite.